Talvez um dos maiores filósofos franceses do século XX, Michel Foucault notabiliza-se pela monumental obra que abrange reflexões passíveis de tocar inúmeras áreas do conhecimento. Curiosamente, porém, muitos afirmam que o filósofo não nos legou uma obra que tratasse, especificamente, do Direito ou de uma Filosofia do Direito.
A obra em análise debruça-se sobre os escritos de Foucault visando exatamente identificar pontos de seu pensamento que tenham sim tido relação com o Direito. De acordo com o autor, Foucault teria sido com frequência “provocado” pelo universo jurídico, ao que respondeu utilizando o modelo do Direito como ferramenta de análise do Poder, utilizando passagens jurídicas para incrementar seus escritos, examinando práticas do Direito para trazer à luz elementos constitutivos da norma. A chamada “dúvida” ou “desconfiança sistemática” de Foucault também se faz presente em seu olhar sobre o saber júridico, tal como revelado em suas práticas e da forma de realização da justiça, constante ainda de sua resistência aos mecanismos de normalização e à busca de um desenho ético para o Direito.
Contudo – conclui o autor – toda essa construção ocorre sem que Foucault tenha propriamente feito do Direito um objeto de reflexão, objeto aqui definido do ponto de vista filosófico, enquanto alvo de análise sistemática a ensejar a construção de uma teoria do objeto.
No entanto, o estudo do olhar foucaultiano sobre o Direito brinda o leitor com novos modos de realizar a análise desse ramo do conhecimento e suas implicações sobre a vida concreta das pessoas e sobre as formas a serem dadas às práticas jurídicas. Foucault, tal como demonstrado pelo autor, também nos instrumentaliza para pensar o conceito de “ilegalidade”, nos aponta caminhos para analisar as correlações entre o mundo formal do Direito e os domínios concretos da vida; por fim, o autor também demonstra que Foucault nos incita a repensar as práticas jurídicas, para que elas possam ser os meios de realização da nossa autonomia. Este é, ao mesmo tempo, o legado do grande pensador francês e também o valor da leitura desse trabalho de que o estudioso brasileiro tem o privilégio de utilizar como fonte de reflexão e pesquisa.
Trata-se esse lançamento da 2.a edição de obra que já existia anteriormente, da Max Limonad. Seu autor é professor do Departamento de Filosofia da PUCSP, junto à qual também obteve o título de mestre, sendo também doutor em Filosofia do Direito pela USP. Foi pesquisador da Universidade de Nantes e do Institut Mémorie de l’Edition Contemporaine (IMEC – Paris). Em 2006, concluiu seu pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de Paris-XII. Também escreveu Michel Foucault e a constituição do sujeito, lançado pela EDUC em 1995. Atualmente é professor Asistente-Doutor do Departamento de Filosofia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da PUCSP. Tem experiência em pesquisa nas áreas de Filosofia e Direito, com ênfase em Filosofia das Ciências Humanas, Filosofia Política, Ética e Filosofia do Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito, Norma, Poder, Política, Modernidade e Crítica.
Evidentemente, cuida-se de material destinado a estudiosos do Direito, principalmente aqueles envolvidos com os cursos de pós-graduação. Porém, ante a falta de bibliografia específica sobre esse importante pensador (o único trabalho encontrado é da Editora Juruá e intitula-se O problema do Direito em Michel Foucault, de João Chaves), entendo que sua presença no catálogo jurídico não afasta o interesse na leitura por estudiosos de outras áreas.
A capa – da queridíssima amiga Andrea Vilela – me parece genial! Revela um Foucault sorridente, olhando diretamente para o leitor, numa postura relaxada que o convida a dialogar, e por meio desse diálogo descobrir com o pensador modelos novos de análise desse importante campo do conhecimento.
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A fim de ilustrar quão longe se pode ir com as questões jurídicas que circundam nossa vida diária tão de perto, separei para leitura um trecho da peça A Santa Joana dos Matadouros, de Brecht (São Paulo: Cosac Naify, 2009, Coleção Prosa no Mundo, tradução e apresentação de Roberto Schwarz, p. 163). Em especial para pensar as “estruturas de legalidade” a que o autor alude ao longo do livro que ora apresento. O trecho referido assim fala:
GRAHAM
Recorda, Bocarra, que de contrato na mão
Nos forçaste a te entregar a carne
E portanto a comprá-la no exato dia
Em que só tu mesmo a tinhas para vender.
Logo que te foste, ao meio-dia, Slift
O teu preposto, apertou mais a nossa garganta. Forçou o preço
Até que chegaste a noventa e cinco. Aí
O velho Banco Nacional resolveu intervir. Resmungando
Muito a venerável instituição foi ao Canadá buscar novilhos
Para o mercado desfalecente. Os preços estacaram nervosos.
Mas o desvairado Slift mal entreviu
Os poucos boizinhos vindos de longe os arrebatou
A noventa e cinco tal qual um bêbado
Que já bebeu um mar inteiro mas lambe sempre sedento
As gotas esparsas que ainda alcança. A venerável instituição assistia a tudo
Consternada.
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Para finalizar a apresentação desse trabalho, destaco dos dizeres do próprio autor: “em Foucault somos levados incessantemente a pensar o direito, mas pensá-lo ‘diferentemente’. Pensá-lo a partir da indeterminação do próprio objeto ‘direito’, pensá-lo através de imagens que não permitem a formulação de uma teoria precisa. Entretanto, caberia perguntarmos se esse não seria ainda o papel de uma Filosofia do Direito. Se pensar o direito é precisamente o papel da Filosofia do Direito, então a filosofia de Michel Foucault tem muito a propor para tal disciplina. Ainda que, talvez justamente porque ela nos leve a pensar o direito diferentemente”.
Sejamos, pois, os artífices dessa diferença.